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20/06/2022

A história de um sonho que se realizou

Por Andrea Riccardi - Artigo publicado na Gazzetta d'Alba - Centro Internazionale di Spiritualità Paolina

Após a publicação do texto de Gianfranco Maggi, segue agora o de Andrea Riccardi que no palaAlba, dia 28 de novembro passado, reevocou a figura de padre Tiago Alberione no contexto da Igreja de Novecentos.

Riccardi, nascido em Roma, ensinou história contemporânea e recebeu vários doutorados honoris causa. Em 1968, fundou a comunidade de Sant’Egídio, conhecida por seu trabalho em favor da paz e do diálogo. A revista Time em 2003 o inseriu no elenco dos trinta e seis “heróis modernos” da Europa, que se distinguiram pela coragem profissional e o empenho humanitário. Colabora com numerosos periódicos e quotidianos. É estudioso da Igreja na idade moderna e contemporânea, mas também do fenômeno religioso em seu complexo. Em 2011 publicou João Paulo II. A biografia (São Paulo) e recentemente A Igreja queima. Condecorado com o prêmio Carlos Magno, foi ministro no Governo Monti, e de 2015 é presidente da Sociedade Dante Alighieri.

Padre Tiago Alberione é um homem de Novecentos. Nascido no limiar do século, em 1884, vive as grandes vicissitudes do tempo numa Itália já solidamente unificada.

belle époque, as duas guerras, a crise do Estado liberal e o advento do fascismo, a República democrática, o comunismo, a transformação rural e o desenvolvimento do segundo Pós-guerra, o boom econômico, o concílio Vaticano II: são eventos que envolvem a sua vida. Morre aos oitenta e sete anos, em 1971, quando o mundo está imerso na guerra-fria e ninguém intui que o bloco comunista possa cair.

Alberione é homem do século: não um padre avulso da história do Novecentos. Entra em contato com as grandes transformações políticas, econômicas, antropológicas do tempo. A sua visão da Igreja não é fechada nas instituições eclesiásticas ou no pequeno mundo antigo dos católicos e das Langhe. Ele sente os “impulsos”, como se diz, da história. Quando se abria o Novecentos, em Berlim, o grande estudioso alemão de doutrinas religiosas, Ernst Troeltsch, personalidade de grande cultura, assim saudava o tempo que estava se abrindo: «Senhores meus, tudo vacila». E “Tudo vacila” era o brinde ao Novecentos.

1. Missão para o novo século que começava

A noite entre o dia 31 de dezembro de 1900 e o primeiro de janeiro de 1901, foi um momento especial para o rapaz de 16 anos e seminarista Alberione. Passou-o em oração na antiga catedral de Alba, segundo o convite de Leão XIII. O rapaz, na catedral com os colegas de seminário, permaneceu toda a noite «vagando com a mente no futuro»: parecia-lhe que, no novo século, almas generosas haveriam de sentir quanto ele intuía e, associadas, teriam realizado aquilo que Toniolo repetia: “Uni-vos; o inimigo, se nos encontra sozinhos, vence-nos um por vez”. O pensamento social de Toniolo inflamou o seminarista. Era o Toniolo do Programa dos católicos diante do socialismo, de 1894: aquele programa expresso no slogan: «Proletários do mundo inteiro uni-vos em Cristo sob o estandarte da Igreja!», contido no livro de 1900 A democracia cristã, para uma aplicação veraz do catolicismo social.

Uma missão brilhou aos olhos do rapaz, que retomava o pensamento de Toniolo: «Ser os apóstolos de hoje, empregando meios adotados pelos adversários». O campo que tinha diante parecia-lhe o “novo século” a ser enfrentado com “novos meios”. É a intuição base: um campo enorme e novos meios para trabalhá-lo. Expressa a modernidade de seu modo de ver e agir. Não tinha medo do mundo contemporâneo, que lhe parecia cheio de recursos, ainda que cheio de insídias. Mais tarde, não terá medo do mercado, do dinheiro, das máquinas, do risco calculado. Não era, porém, um aventureiro.

A sua configuração era intransigente na fidelidade à igreja e no juízo sobre as “insídias”, mas muito aberta aos homens e às mulheres do tempo, também às oportunidades e aos meios que iam se abrindo. Alberione, afinal, tanto como jovem sonhador quanto como idoso fundador, nunca foi um tradicionalista.

Escreve na autobiografia, usando a terceira pessoa: «Sentiu-se profundamente obrigado a se preparar para fazer algo para o Senhor e os homens do novo século com os quais teria vivido». Fazer para o Senhor: é o religioso pensamento do seminarista. Mas também fazer para «para os homens do novo século com os quais teria vivido»: os homens do século novo não são só os fiéis, mas todos, porque com eles deviam viver ele, os seus sequazes, a Igreja. São sonhos de um rapaz de província, como muitos, que frequentemente passam. Mas no jovem, depois padre e teólogo, há uma teimosia no sonho. Sente-se diante de um tempo verdadeiramente novo. «Tudo vacila», dizia Troeltsch. E a Igreja devia estar à altura desse terremoto da história.

2. Abertos à modernidade, mas seguros sobre a fé

Muito parecia vacilar do mundo de ontem, também na pequena Alba (tinha onze mil habitantes em 1900). Também na Igreja que, igualmente em Alba, se sentia desafiada pelos liberais, quer moderados quanto radicais e anticlericais.

A Igreja era desafiada, no plano político-social, pelo movimento socialista que, em 1895, tinha assumido em Parma o nome de Partido socialista italiano (em 1921, no congresso de Livorno, com a divisão maximalista, deu vida ao Partido comunista da Itália).

Estas forças políticas eram expressão daquela autorredenção político-social do proletariado que teria ocupado a cena do Novecentos, alternativa à Igreja. O marxismo, na versão leninista, era a ideologia que, da Europa, iria ser exportada no mundo.

A Igreja era desafiada por um mundo político que havia secularizado e politizado a redenção. Mas não só. Era desafiada também internamente, como pensamento teológico e doutrina, pela cultura histórico-crítica que punha em discussão o seu ensinamento. Era o modernismo, assim definido pelos adversários e condenado por Pio X com a encíclica Pascendi de 1907: eram as posições dos católicos como se lê no Programa dos modernistas (escrito anonimamente pelo padre romano e estudioso do cristianismo, Ernesto Buonaiuti), «viventes em harmonia com o espírito de seu tempo», que miravam adaptar a religião a «todas as conquistas da época moderna no domínio da cultura e do progresso social».

Diante das conquistas do pensamento crítico como da ciência, a grande pergunta da Igreja era: adaptar-se ou não? Emile Poulat, grande histórico francês, disse isto há vários decênios. Quando “tudo vacila”, é necessário que a Igreja se adapte ou se oponha? Mas, opor-se significava fechar-se nos templos ou nas sacristias, no velho mundo antigo, na perenidade dos ritos em latim? Com a vida e a obra, Alberione traça, para si e os seus, uma linha delicada e construtiva em resposta a esta pergunta: é necessário ser intransigentes sobre a fé (é assim sobre a questão modernista), sobre ideologias (é assim com os liberais e as esquerdas), mas é preciso adaptar-se ao século, não somente na recepção dos instrumentos novos, mas também na proximidade à realidade das mulheres e dos homens que mudam. Alberione passa a noite entre os dois séculos, rezando com a fé antiga que lhe foi transmitida por sua família de camponeses, e que agora estava aprofundando no Seminário de Alba (uma instituição de severa tradição de estudos, ainda que de província, onde pesavam personalidades como o Cônego Chiesa, de onde sairão padres como padre Bussi e monsenhor Rossano).

Era o homem da fé dos papas. Alberione, durante a vida, é um católico papal, não só porque precisa do papa (isto se vê nas primeiras dificuldades com o bispo de Alba, quando se subtrai dele e vai para Roma), mas porque os papas são, para ele, os profetas diante do horizonte do século. Exatamente em novembro de 1900, fica muito tocado pela encíclica de Leão XIII, Tametsi futura, na qual o Papa registrava a distância de muitos da fé, mas a si mesmo perguntava: «A volta completa da sociedade ao espírito cristão e às antigas virtudes não é talvez a maior necessidade dos tempos?».

O jovem ficou tocado pelo texto (que a meu sentir não é nem dos mais incisivos de Leão XIII, mas sabe-se que muitas vezes uma palavra toca, dado um estado de ânimo predisposto).

3. Sacerdote e editor

Um outro papa, Paulo VI (que foi encontrá-lo na vigília de sua morte), traçou o perfil de Alberione, no final de sua vida, em 1969, recebendo os Capitulares dos Paulinos: «Devemos ao vosso fundador, aqui presente, ao caro e venerado padre Tiago Alberione, a construção do vosso monumental instituto. Em nome de Cristo, nós lhe agradecemos e o abençoamos. Ei-lo: humilde, silencioso, inestancável, sempre vigilante, sempre recolhido em seus pensamentos, que correm da oração à obra… sempre ocupado em perscrutar os “sinais dos tempos”, isto é, as mais geniais formas de chegar às almas, o nosso padre Alberione deu à Igreja novos instrumentos para se expressar, novos meios para dar vigor e amplidão ao seu apostolado, nova capacidade e nova consciência da validade e da possibilidade da sua missão no mundo moderno e com meios modernos».

Citei longamente Paulo VI, não somente pelo retrato eficaz do fundador, mas porque explica o método de Alberione como teologia dos sinais dos tempos, que nasce da estação conciliar. Mas ele o havia praticado em antecipação e com um instinto evangélico. Era movido pelo desafio do “novo século”, que encarou com o uso de “novos meios”, não “igrejeiro”. Aqui está em germe a intuição que desenvolve por uma vida, que faz dele – como diz o título de nossos encontros – um “empreendedor de Deus”.

Empreendedor é figura nova, que pertence ao mundo da segunda revolução industrial. Empreendedor a nível mundial, porque desenvolve a sua ação no mundo e viaja, também num tempo no qual os superiores gerais não viajavam muito (e considere-se que sua fragilidade aparente era acompanhada por um permanente sofrimento físico, devida a uma problemática ligada à colune vertebral).

Era sacerdote e empreendedor: não é uma contradição? Como não é uma contradição aquela dos padres seus seguidores que estão na tipografia ou das irmãs que vão de casa em casa com Família cristã ou outra imprensa? Não se trata só de uma obra ousada no campo educativo, caritativo, missionário, mas aqui Alberione entra no mundo da produção, no mercado. Em 1923, por exemplo, a Sociedade de São Paulo anônima por ações, constituída em 1923, é regularmente notificada em bolsa e prevê que, na repartição dos úteis, os 70% vá aos acionistas (temos as fichas com os dividendos). Coisa que não pode não suscitar perplexidade no ambiente eclesiástico. Uma sociedade por ações para uma obra religiosa?

Contudo era o mundo do século. Em 1900, em Paris, fora realizada a Exposition universelle, da qual a Torre Eiffel havia sido a expressão mais conhecida e que continha também uma Galerie de machines: era, para os cinquenta milhões que a visitaram, a exaltação das obras do progresso, das máquinas, da inventividade humana, das descobertas, do gosto pelo empreendimento, que faziam sonhar um Novecentos todo novo, produzido pelo desenvolvimento humano. O quê de tudo isto chegava em Alba no fim do Oitocentos e início de Novecentos?

Era uma cidade prevalentemente agrícola e com escassa industrialização, onde até os socialistas haviam encontrado espaço limitado. Mas, em Alba, diante de um século que nasce orgulhoso pelo desenvolvimento, no tempo da belle époque, Alberione concebe um sonho que está à origem de tantos outros sonhos: usar os meios modernos e seculares, porque o uso deles não seculariza a mensagem cristã, mas a multiplica. Havia experimentado isto na direção do jornal, Gazzetta d’Alba: tipografia, jornais, livros, cinema, a rádio e outros vêm dessa intuição. Impacta-me, nesses mesmos anos, a história do padre Kolbe, franciscano, conhecido pelo martírio em 1941 em Auschwitz. Ele, na Polônia independente, enfrenta a mesma problemática de Alberione (tinha dez anos menos que ele, porque nascido em 1894).

Kolbe pôs o uso da máquina ao centro da impressão dos seus jornais, como O cavalheiro da Imaculada que, dos 5 mil exemplares de 1922, chegou ao milhão em 1938. Transformou um grandíssimo convento, não longe de Varsóvia, com setecentos irmãos operários ao redor das rotativas e às linotipos, num centro de imprensa e difusão muito vasto, no qual – como dizia o cardeal Wojtyla – fazia «cantar as máquinas à glória de Deus»: queria dirigir-se, continua o Papa, «aos pobres, famintos da palavra do Senhor como do pão». É significativo que eram dirigidas, nesses mesmos anos, a Kolbe, na Polônia, as mesmas objeções endereçadas a Alberione na Itália. Sinal de uma mentalidade católica. Objetaram ao frade polonês que a sua empresa editorial era contrária ao espírito de pobreza franciscano. Assim ele respondeu: É uma razão suficiente para permanecer acomodados no século treze como se estivéssemos numa poltrona, fechando as portas ao progresso técnico? Qualquer um que desejasse imitar São Francisco ao pé da letra não deveria nem pegar o trem ou ler os jornais, e nunca, nunca fumar cigarros! … Não devemos temer o progresso, devemos santificá-lo».

Kolbe converte uma parte dos coirmãos franciscanos à sua empresa que, como notava Wojtyla, é dirigida a uma parte pobre da população.

 4. O fundador dos institutos

Alberione, para realizar aquela missão, sonha e cria um movimento de homens e mulheres que se dediquem totalmente a ela. Escreve: «A necessidade de uma nova fileira de apóstolos fixou-se em sua mente e em seu coração, que depois dominaram sempre os seus pensamentos, a oração, o trabalho interior, as aspirações. Sentiu-se obrigado a servir a Igreja, os homens do novo século e a trabalhar com outros… Desde então estes pensamentos dominaram o estudo, a oração, toda a formação: e a ideia, antes muito confusa, se esclarecia e com o passar dos anos tornou-se também concreta».

Aqui há a dimensão do fundador de comunidade que se desenvolve até à morte em 1971, com a criação de vários ramos da frondosa Família paulina, tão frondosa de congregações, institutos, cooperadores leigos que, uma vez, há anos, chamado a falar aos Paulinos, eu a defini «a selva paulina». Não farei a história dela: o fundador não está só no início da Sociedade de São Paulo, mas das Filhas de São Paulo, das Pias Discípulas, das Pastorinhas, das Irmãs Apostolinas, dos Institutos seculares agregados, dos cooperadores leigos. A estes ramos frondosos propõe a unidade e a cooperação na imagem da Família de São Paulo. Nem sempre a Santa Sé, sobretudo a Congregação dos religiosos, o dicastério vaticano que se ocupa deste setor, é favorável à construção unitária desta Família.

Gostaria de sublinhar que, se mais tarde acentuaram-se as distinções, Alberione bem cedo se interessa pelos leigos (desde 1909 pensa a leigos consagrados), depois à mulher também associada aos sacerdotes, além dos cooperadores como ordem terceira. Muitas iniciativas e fundações nascem de sua experiência do “século”, que é a secularidade do tempo, o qual requer novos apóstolos, como se diz, e sacerdotes que não fiquem fechados na igreja. Acima de tudo domina o sonho: entrar em um espaço, em larga escala vedado à Igreja. É então um formador dos operários do sonho, aos quais fala continuamente e comunica espiritualidade e entusiasmo. É um missionário e um empreendedor: assim se lança no mercado do tempo, da vida, das escolhas do povo.

Para tal missão servem mesmo religiosos? Em 1922, da Congregação dos religiosos, guiada pelo piemontês e nobre cardeal Valfré de Bonzo lhe é notado que, não obstante o “nobilíssimo fim”, não servem religiosos. Pode uma congregação ocupar-se somente de imprensa? Ocorreram cinco anos para o reconhecimento diocesano com Pio XI. No entanto difundem-se nas paróquias O Domingo, o semanal litúrgico, e Vida pastoral para o clero. Afinal a intuição e a obra de Alberione impõem-se por si mesmas: ao povo e aos bispos. Pio XI conclui o caso com uma sentença clara, que expressa também a modernidade de seu pensamento: «Nós queremos uma congregação religiosa para a boa imprensa».

Há uma discussão se Alberione foi portador de um ou mais carismas, mas a mim interessa sublinhar que foi o realizador de um sonho. Até na velhice continua a sonhar. Um sonho construtivo. Cada fundação, na história da Igreja, contém uma leitura crítica da realidade eclesial, das lacunas, das faltas e das inércias. Esta leitura não desenvolve só um pensamento crítico, confiado a livros ou intervenções públicas. Mas nasce uma utopia que leva um fundador a dizer: «Aquilo que a Igreja não faz, provo a fazê-lo eu com novos companheiros e companheiras». Esta prospectiva encontra dificuldade com as instituições eclesiásticas, como Alberione experimenta, mas é típica do catolicismo que é, contemporaneamente, uma Igreja muito institucional, mas também capaz de livres iniciativas carismáticas. Este é o gênio da Igreja católica, que consente sua vitalidade e garante uma liberdade de iniciativa, que leva um simples sacerdote de Alba a estar à cabeça de oito congregações, e muitas obras, jornais, iniciativas no terreno da comunicação, permanecendo um pequeno padre.

Alberione tinha um pensamento crítico. Em seu votum para o Vaticano II sugeriu a possibilidade de servir-se da Missa pela televisão para algumas categorias e o uso da língua vulgar em algumas ações litúrgicas. Após o Concílio afirma seu pensamento crítico: «Este contínuo descristianizar-se da vida, da arte, do pensamento etc. depende da falta de oxigênio litúrgico-biblico no qual nós por séculos fizemos o povo viver. Do fenômeno de séculos da separação entre liturgia e Biblia, resultam consequências dolorosas: o grande povo que não entendia a Missa, os sacramentos, as funções…Uma pregação destacada da Bíblia não era sentida como a palavra de Deus, mas, ao invés, um raciocinar do homem».

5. De Alba para Roma, na estrada do mundo inteiro

De onde nascia este pensamento crítico sobre a Igreja que empurrou Alberione à sua obra? É o que diz Paulo VI: da leitura dos “sinais dos tempos”, isto é, das necessidades da história.

Porque ele pensava a Igreja na história e não de modo abstrato. Escreve em Abundantes divitiae, um texto autobiográfico que lhe foi pedido quando tinha sessenta e nove anos e estava em Roma: «Tudo lhe foi de escola». Frase muito bela: a firme fé não lhe impedia de aprender de tuto e todos. Aprendendo, Alberione não podia não ver as situações críticas na Igreja.

Contou-me padre Renato Perino, que foi superior geral da São Paulo, que quando jovem acompanhava Alberione, de casa ao Concílio e depois de volta, e ele lhe confiava os problemas que via na Igreja com criticidade e participação.

O sacerdote humilde, quase de mais na aparência, que aparece severamente vestido com a talar, com a cabeça abaixada (como era visto desde os primeiros tempos caminhar pelas ruas de Alba, como estivesse concentrado em si mesmo ou em outro mundo), não somente era um homem concreto e efetivo, mas amava estar na história e a sabia ler.

Era um amante da história. Também dom Bosco, uma figura à qual o Alberione olha muito, amava a história. Ainda jovem, padre Alberione tinha lido a história universal da Igreja de Rohrbacher, a de Hergenroter e a História universal em 35 volumes de Cesare Cantù.

A leitura da história foi quase uma disciplina para Alberione, tanto que por dez anos leu as duas primeiras obras citadas e por oito anos os muitos volumes do Cantù. Não é um acaso – é ele mesmo a dizê-lo – que lhe interessava o livro de Enrico Swoboda, La cura d’anime nelle grandi città, que considerou um seu grande mestre.

Não traçarei a história de Alberione, conhecida pela maioria. Há também um sentido na geografia da sua vida que tem dois polos: Alba e Roma. Alba permanece sempre no coração do piemontês realizador e ligado à terra, como é: aqui, entre esta gente concreta, está o seu mundo. Alba resta sempre o coração para o movimento por ele fundado.

Mas Roma é decisiva. Aqui, de 1933, Alberione se move habilmente, também para a visita canônica do bispo em Alba, preocupado que as contas não quadrem. Roma quer dizer mais. Ele fala de “romanidade”: «O Papa é o grande faro aceso por Jesus para a humanidade», afirma. Os papas são os interlocutores e os inspiradores do Primeiro Mestre, como é chamado o empreendedor de Deus. De Roma recebe, em 1941, o reconhecimento de congregação pontifícia. Roma é a estrada para o mundo inteiro.

Se Alba e Roma permanecem duas referências decisivas, onde o fundador quer a construção de seus templos (aliás, em Roma, sem grande incidência no tecido religioso da cidade, também pela presença de tantas igrejas de bem maior tradição), a geografia de suas congregações mede-se com o mundo: as suas fundações, não só italianas ou europeias, mas no Brasil, Argentina, Estados Unidos, China, Filipinas, Japão. Não traço a geografia da propagação da obra. Há uma conexão entre romanidade e universalidade. Esta última significa segundo o fundador: «Trazer no coração todos os povos; fazer sentir a presença da Igreja em cada problema; espírito de adaptação e compreensão por todas as necessidades públicas e privadas». E não por acaso tinha um mapa-múndi sobre sua mesa de trabalho.

O fundador, tão piemontês, começa a se locomover pelo mundo. A primeira viagem é em fevereiro de 1939, quando sai pela primeira vez da Itália e vai a Czestochowa para visitar a pequena comunidade paulina, que tem problemas. Em 1945, com madre Tecla Merlo, cofundadora das Filhas de São Paulo, parte para os Estados Unidos, de onde vai à Argentina e Brasil. Depois há a Ásia. Em 1957 vai à África. Afinal, Alberione, provinciano de Alba mudado para Roma, com mais de sessenta anos, conhece o mundo e dá aos Paulinos, tão italianos, uma diretriz universalista: «Descobri aquilo que há de verdadeiro, de bom, de são no culto… Não se trata de levar usos, língua, nacionalismo… Não se trata de fazer colônias sob o aspecto religioso, mas de fazer cidadãos do reino de Jesus Cristo». Este é o pensamento da Igreja de Roma sobre a ação missionária, que não é uma colonização religiosa: testemunha-o em Roma na Propaganda fide, na Congregação para as missões, monsenhor Celso Costantini, seu secretário.

 6. Levar a palavra de Deus às mãos do povo

É necessário chegar a todos: na Itália e no mundo. Alberione diz a Paulo VI de modo simples e eficaz a sua preocupação: «As quatro pias mulheres que fazem a comunhão toda manhã, os quatro jovens que se reúnem ao redor do pároco toda tarde, não são toda a cidade, não são o povo todo». O fundador olha ao povo, mas o povo de Novecentos não é aquele das grandes procissões ou que se reúne nos ritos da paróquia. O povo está fora dos recintos da Igreja. Não obstante Alberione continua a falar de povo e não se contenta.

A Igreja havia reagido, desde Oitocentos, com a ideia das missões populares que deveriam ter reconduzido o povo à igreja. Depois o movimento católico, antes de tudo a Ação católica, manifestava uma Igreja menos clerical, a qual através dos leigos vivia nos ambientes, criando figuras e espiritualidade novas, como a vida e o compromisso militante católico.

Alberione tem uma intuição simples e basilar: levar o Evangelho a todos. Escreve: «Naquele tempo lia-se raramente e somente por alguma pessoa o Evangelho, como pouco se frequentava a Comunhão. Havia também uma espécie de persuasão, que não se pudesse dar ao povo o Evangelho, muito menos a Bíblia. A leitura do Evangelho era uma quase exclusividade dos acatólicos». Ao invés o Evangelho devia chegar a todos e nas casas: «Que ao Evangelho se desse um culto… a pregação deve muito mais citar e modelar-se sobre ele». Entre 1960 e 1961, lança a Bíblia de mil liras, um preço muito baixo (e uma empresa economicamente arriscada) que consente ao texto sacro de entrar em todos os lugares, preparando a consciência bíblica do Vaticano II.

O Concílio de fato quer repor a palavra de Deus nas mãos do povo. Em cinco anos, nos anos sessenta, foram vendidas na Itália quase um milhão e meio de Bíblias. Escreve Alberione: «A Bíblia deve ser lida com simplicidade: quando o papai escreve uma carta não se vai a olhar a gramática ou a sintaxe: a gente quer entender quais notícias dá». Por detrás dessas palavras não há um conselho ingênuo, mas Gregório Magno que diz: «O que é a Escritura senão a carta de Deus onipotente à sua criatura? Leia-a, portanto, com ardente amor». A Bíblia, para ele, deve ser lida em família, na escola e na igreja, onde deve-se dar um verdadeiro culto às Escrituras. Havia estudado várias espiritualidades, mas no fundo, dizia, há «Que outra coisa é a Escritura se não a carta de Deus onipotente à sua criatura? Leia, portanto, com ardente amor». É uma tese afirmada também pelo cardeal Martini, que insistia sobre a força bíblica unificante das diversas escolas espirituais.

A fé não era algo de individual, mas devia empenhar a vida e o ambiente, tornar-se cultura não em sentido acadêmico. Para Alberione, era necessário criar uma cultura de povo, inspirada pela fé. Não significava só imprimir textos religiosos ou teológicos (de resto a São Paulo teve uma grande função após o Concílio em tornar conhecidos na Itália os textos dos grandes teólogos europeus, como Rahner ou Congar, nos estupendos volumes encadernados e coloridos da “Biblioteca de cultura religiosa”). Um povo não existe sem uma cultura partilhada. Era preciso criar uma cultura popular.

A obra mais sucedida nesse sentido é Família cristã, nascida em 1931 com a contribuição das irmãs Paulinas, desde a noite da vigília de Natal. Alberione confia à revista a tarefa de criar uma cultura de povo: «Família cristã não deverá falar de religião cristã, mas de tudo cristãmente». Por primeiro é endereçada às mulheres e às mães. A imprensa não está só a serviço da doutrina. Em 1982 João Paulo II afirmava algo de muito lúcido nesse sentido: «Uma fé que não se torna cultura é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada, não fielmente vivida». Uma dimensão de povo vive numa cultura. E a cultura precisa de intelectuais, mas também de operários das empresas, de difusores.

Afirma Alberione: «Hoje, mais do que nos tempos passados, vale a organização, especialmente internacionais, em todo setor». A modernidade deste empreendedor de Deus está em compreender como, no mundo contemporâneo, não se pode ter medo de fazer coisas grandes. E tais coisas são possíveis com a organização. Tecnologia, organização, espírito de empresa, entusiasmo evangélico formam uma amálgama humana da qual nasce a obra de Alberione. Em 1951, o fundador afirma que «a Palavra não é prisioneira», como ensina são Paulo, «o progresso humano fornece os meios sempre mais perfeitos e eficazes». Sentia o fascínio pela frase de Ketteler, arcebispo de Mogúncia: «Se são Paulo voltasse ao mundo, tornar-se-ia jornalista». O problema é «ser são Paulo vivo hoje»: pode parecer uma ambição desmedida, querer encarnar e ser igual ao apóstolo dos gentios, que deixa o sinal em parte tão relevante do Novo Testamento, que faz uma passagem decisiva do cristianismo do mundo hebraico às gentes. É a ambição pessoal e, sobretudo coletiva (para a sua família religiosa) que padre Alberione nutre com decisão. Entre pequenas ambições e muitos medos do mundo eclesiástico, destaca este plano apostólico, de empreendedorismo, cultural e humano, sobretudo missionário, com a tenacidade de lutar para realizá-lo e para organizar um mundo de colaboradores com instrumentos modernos.

A ambição espiritual e prática do fundador é muito grande e me leva a relembrar um grande padre da Igreja, João Crisóstomo, que pregava sobre o apóstolo Paulo: «Do momento que Deus honrou a tal ponto o gênero humano até considerar um só homem (Paulo) digno de realizar empresas tão grandes, emulemos a ele, imitemos, esforcemo-nos em nos tornarmos também nós como ele e não pensemos que isto seja impossível».

A história deste empreendedor de Deus, num tempo de grandes medos como o nosso e de pequenas ambições, quer na sociedade como na Igreja, parece-me que aponta para o valor criador e mobilizador do sonho: um sonho não de grandeza, quanto de paixão pelo Evangelho e por aquilo que ele continua a chamar o povo e que deseja que seja de verdade um povo grande.