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07/03/2022

Essência e bases teológicas: aspectos da Vida Religiosa Consagrada

Por Eligelson Barroso, ssp

Introdução

Todo chamado é dom precioso de Deus que desperta e incentiva para a vida. Pelo batismo cristão se é introduzido na comunidade dos crentes, na comunidade de Deus, que se faz presente na história e na luta das nações. O batismo configura os eleitos para a exigência do amor a Deus e ao próximo, e assim espera-se uma resposta autêntica a esse amor que ama por primeiro a todos, sem distinção. Com essas premissas, fala-se da verdadeira essência da vida religiosa consagrada, que, talvez, tenha ficado perdida em si mesma ou orientada para outra direção, que não é a sua verdadeira identidade.

A compreensão do sentido, da essência da vida consagrada, deve ser buscada nas raízes históricas e teológicas que fundamentam e caracterizam esse estado de vida e dom particular para a Igreja. As bases teológicas apresentam os elementos que tecem e estruturam a vida de consagração. Apontam os caminhos e os fundamentam quando expressam que a vida religiosa não nasceu estritamente a partir do modo como viveu Jesus de Nazaré e muito menos surgiu com ele, mas que teve inspiração nas Sagradas Escrituras e nos ensinamentos do Mestre Divino. O verdadeiro início da vida religiosa surge com o ideal de viver plenamente o compromisso do batismo, na radicalidade ao amor a Deus e ao próximo.

Por muitos séculos, e isso foi algo que afastou a vida religiosa de sua verdadeira essência, acreditou-se que a vida de consagração se constituía estado de vida para perfeitos, ou melhor, que a própria vida consagrada era uma vida de perfeição. A imagem do estado de perfeição não correspondia ao verdadeiro sentido que deu origem à vida consagrada. Os Padres do deserto, quando resolveram afastar-se do “mundo” para viver de maneira livre e austera, buscavam com suas imperfeiçoes e misérias humanas traçar um caminho de constante aperfeiçoamento e aprendizado e não de pessoas já perfeitas.

A vida religiosa consagrada não é uma fuga do mundo rumo ao ideal de santidade e perfeição, mas sim uma consagração, ou seja, tornar sagrado o dom da vida que Deus concedeu benevolamente a cada um. E por meio deste ato, que evoca a radicalidade do compromisso do batismo, entregar-se totalmente, tudo que sou e tudo tenho, a fim de viver com generosidade o amor a Deus que se concretiza na vivência, na entrega, na partilha, no serviço aos irmãos, um constante sair de si, mas que deve estar integrado com a própria vida, ou seja, com as riquezas e as limitações.

  1. A experiência do amor: a essência do ser religioso

Na busca pela redescoberta da essência da vida religiosa indicam-se alguns fatores que podem descrever o atual cenário em que se encontra a vida de consagração. “Em geral, há falta de vocações novas em quase todas as nossas congregações. Não temos os números que tivemos no passado e não estamos atraindo tantos vocacionados. […]” (KEARNS, 2017, p. 7). É bem verdade que no passado os conventos estavam cheios de adolescentes e jovens entusiastas, mas hoje poucos são aqueles que ainda sentem esse fervor ou acham-se atraídos por esses estilos de vida. Indica-se uma possível resposta que se relaciona com certo comodismo e desencanto da parte daqueles que já se encontram no caminho da consagração. “Há certo desânimo que prevalece em nossas comunidades. Faltam aqueles sinais de vida que sentimos no começo de nossa caminhada na consagração religiosa. […]” (KEARNS, 2017, p. 7). Perder o sentido do primeiro amor, que impeliu homens e mulheres a viver esse projeto de doação, para além do comodismo, pode estar associado à não integração da própria vida de consagrado.

Esses fatores têm contribuído para desistências e abandonos da vida consagrada. “[…] Esquecemos o que somos na Igreja e no mundo. E, quando perdemos nossa identidade, também esquecemos os elementos essenciais que alimentam nosso ser e nosso agir religioso. […]” (KEARNS, 2017, p. 9). Nesse sentido, há um apelo, vislumbram-se esperanças, nem tudo está perdido ou defasado, mas não se nega que há muito a fazer, no sentido de tentar resgatar o verdadeiro sentido/essência da vida religiosa consagrada, que a identifica como verdadeiro dom de graças para a Igreja. A verdadeira essência da vida consagrada, ou seja, o seu sentido primaz para o qual foi constituída e, por isso, tem sua razão de ser, está nas origens com os primeiros Padres do deserto que, buscando viver com radicalidade as exigências do batismo, desejavam experienciar no amor a Deus e ao próximo o “Primado do Absoluto”, e com determinação viver a sua fé de batizados.

  1. Vida de perfeição e ativismo: a crise de identidade

Em alguns séculos de história da vida religiosa, perduraram e conservaram-se como dogma alguns erros que não poderiam caracterizar o estado de vida religiosa. Com isso, afirmava-se que a “perfeição” só poderia ser alcançada dentro da vida consagrada e que os outros estados de vida não contemplariam tal objetivo. “[…] A conclusão, que perdurou nos últimos séculos, foi que a ‘perfeição’ pertencia somente ao estado da consagração religiosa. Não se poderia chegar à perfeição nos outros estados de vida […]” (KEARNS, 2017, p. 11). No entanto, esse fato, que por séculos perdurou, cai por terra a partir da publicação dos documentos do Concílio Vaticano II, onde se expressou que a santidade se tornava condição de todos os batizados. “[…] o Concílio Vaticano II declarou na Lumen Gentium, n. 110, que o dom da santidade na Igreja é universal. Todos os batizados são chamados à santidade pelo sacramento do batismo. […]” (KEARNS, 2017, p. 12). Sem essa prerrogativa, construída ao longo da história, a vida consagrada se vê descaracterizada de algo que essencialmente não fazia parte do projeto de consagração. Esse fato provoca uma verdadeira desestabilidade que levará a uma crise de identidade.

Outros elementos disseminados como ensinamentos, dentro da vida religiosa, enfatizarão que o verdadeiro religioso é aquele que trabalha para a provisão do sustento de si e dos outros. Verdadeiro heroísmo que se interpretava como o autêntico sentido da vida do ser religioso. Desse modo, o fundamento do trabalho só pode ser entendido dentro da integralidade da vida religiosa como um todo, ou seja, deverá ser compreendido como meio e não simplesmente como fim para a consagração. O fazer excessivo e desvinculado daquilo que realmente é importante na vida religiosa faz do carisma um simples fazer funcional. Muito dessa mentalidade de que o autêntico religioso é aquele que faz, por meio do trabalho, são resquícios de uma ética calvinista que acabou sendo incorporada na concepção do estado religioso. “[…] Essa ética foi traduzida na vida religiosa na seguinte forma: o religioso bom é aquele que produz. Quem não faz e nem produz não pode ser um bom religioso. […]” (KEARNS, 2017, p. 14).

Os riscos do fazer excessivo e a intensa identificação com o trabalho que se realiza, transformam o religioso em um simples funcionário que por dever de ofício deve cumprir os horários, as atividades programadas e ao final do expediente bater o ponto. Se o verdadeiro sentido da consagração estiver exclusivamente pautado no trabalho, logo o cansaço, o desânimo e o vazio acorrerão na vida de consagração, pois aquilo que devia dar motivação e sustento para a atividade encontra-se inexistente ou fragilizado porque não está integrado na vida do ser religioso. “[…] Com tantas atividades ‘do nascer ao pôr do sol’, não havia tempo para viver os elementos essenciais, para alimentar o ser da vida religiosa, como a oração e a vida em comunidade. […]” (KEARNS, 2017, p.15). E quando as forças do vigor, da juventude, se esvaírem restará apenas o sentimento de inutilidade, o que acarretará o desânimo e a falta de vontade, verdadeira crise de identidade. “[…] A conclusão lógica e triste dessa ética do ativismo sem freios é que, de repente, não valemos mais nada como religiosos. […]” (KEARNS, 2017, p. 15). Nesse sentido, a vida de consagração religiosa precisa estar com todos os seus elementos integrados como um todo, dimensões que contemplem e que sejam sustentadas umas pelas outras, ou seja, vida espiritual, vida de estudo, vida de apostolado e vida comunitária. Se não houver integração nessas áreas da vida do ser religioso, aos poucos se perderá o sentido, o porquê de ser religioso, e as motivações existentes não serão suficientes para sustentar a vida de consagração. (KEARNS, 2017).

  1. Consagração como ato de louvor: a exigência do testemunho

O significado da consagração deve ser entendido como resposta livre e alegre a Deus. Isso implica pertencimento e intimidade com ele. A vida de um consagrado, dessa forma, torna-se ato de louvor e adoração a Deus. Ao enfatizar o sentido da consagração como sacrifício de louvor ao Criador, Lourenço Kearns (2017, p. 23) menciona que: “Tornar algo sagrado, no caso da vida consagrada, significa que tudo o que somos, fazemos e possuímos pertence a Deus em doação livre e alegre. Significa que todo nosso ser, […] deve ser dirigido para a glória de Deus […]”. Se, por alguma razão, o sentido do ser religioso não estiver voltado para Deus, mas, ao contrário, para a centralização da própria glória, corre-se o risco de perder-se no vazio existencial. (KEARNS, 2017).

O pertencimento a Deus, mediante a consagração religiosa, exige testemunho que não se dá apenas por aparências, mas no chão da vida, ou seja, no dia a dia, na comunidade e na convivência com os irmãos. O religioso, pelo dever de sua consagração, deve buscar ser testemunho de vida e de coerência na radicalidade do batismo. Nas palavras de Lourenço Kearns (2017, p. 24), “[…] O povo sabe que pertencemos a Deus, mas ele também tem o direito de ver que vivemos isso em profundidade. Somos consagrados a Deus, e não podemos enganar o povo vivendo uma vida totalmente mundana […]”. Às vezes corre-se o sério risco de nem sequer viver aquilo que se prega ou mesmo se reza diariamente, pois, é cansativo, tedioso, e trata-se com indiferença a questão.

  1. Bases teológicas da consagração: aspectos da profecia e da pobreza

Ser consagrado, estar na vida religiosa, pressupõe que se faça parte do corpo místico da Igreja. E com a Igreja integrar a sua missão profética de evangelização, edificação e denúncia em defesa da vida. O anúncio profético faz parte da essência da vida consagrada e por isso é preciso que o religioso assuma concretamente esse compromisso dando ênfase aos valores evangélicos que professa, ou seja, pobreza, castidade e obediência. “[…] Proclamamos o valor da pobreza na profunda partilha de tudo […]. Pela castidade, optamos pelo valor do serviço […]; pelo valor evangélico da obediência, proclamamos uma disponibilidade radical […]” (KEARNS, 2017, pp. 28-29).

A vida em comunidade é um dos princípios que regem a vida consagrada, ganhando sua maior expressão na vivência do voto de pobreza. Viver a disponibilidade radical também se configura em colocar em comum todos os dons recebidos. A comunidade religiosa, formada por homens ou mulheres, aspira ao ideal do amor fraterno, da comunhão e da partilha entre irmãos. Mas essa mesma comunidade tem suas imperfeições que precisam, constantemente, ser assumidas e integradas. Ao expressar aspectos da vida comunitária religiosa, Lourenço Kearns (2017, p. 35), afirma: “[…] Aqui precisamos assumir toda a fragilidade humana de nossa fraternidade, que nunca será perfeita. Sempre haverá imperfeição, que causará dificuldades e dores humanas. […]”. A inspiração e a razão de se viver em comunidade encontra sentido na comunidade perfeita que é a Trindade. É inspirando-se nesse amor que se caracteriza no Pai, no Filho e no Espírito, que a comunidade religiosa busca viver o seu ideal de amor e fraternidade. “[…] um amor que exige, como o amor entre as pessoas da Trindade, um ‘sair de si’ para doar-se ao outro. […]” (KEARNS, 2017, p. 35). A comunidade ademais é constituída de pessoas concretas que possuem uma história de vida, qualidades e defeitos; nesse sentido, é preciso maturidade para acolher e integrar todas essas realidades, a começar pelas próprias luzes e sombras.

Conclusão

Com todos os seus desafios e exigências, a vida consagrada é um lugar de pessoas de verdade, ou seja, bem longe dos padrões de pessoas santas e perfeitas, ela aspira ser lugar de pessoas que estão em constante crescimento e que muito precisam aprender diariamente a viver o “Primado do Absoluto”, a radicalidade do compromisso do batismo: o amor. Deve ser um constante “sair de si para o outro”, e esse sair começa, segundo afirma Lourenço Kearns (2017), com aqueles que Deus coloca na comunidade para partilhar do mesmo amor e do mesmo ideal de vida. São os coirmãos que com suas riquezas, dons e fraquezas, devem ser acolhidos no mesmo dom e integrados na mesma dinâmica do autoconhecimento e crescimento. Eles devem ser os primeiros destinatários do amor a Deus que se concretiza no amor ao próximo. Todas essas realidades fazem parte desse ser religioso, que deve constantemente fazer o exercício de transformar a sua vida em um ato de louvor e agradecimento a Deus, pois para isso é que ele ou ela foram separados e consagrados a Deus, não como coisa, mas herdeiros do projeto de salvação, pois ele nos amou e por nós se entregou (Gl 2, 20). E em resposta a tudo o que Deus fez e faz na história da humanidade, é que a vida consagrada busca ser luz e dom gratuito a todos. Quando existe desânimo, um ativismo desenfreado, uma autorreferência, é porque de algum modo houve afastamento do verdadeiro ideal de consagração que não pode ser encarado como utopia, mas como um modo de vida que se atualize e esteja em consonância com os tempos de hoje.

Referências bibliográficas

Bíblia. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2002.

KEARNS, Lourenço. Teologia da vida consagrada. Aparecida – SP: Editora Santuário, 2017.