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21/06/2021

Os três recursos dos “filhos” de Paulo

Por Giacomo Perego, ssp*


O que aconteceu com Paulo depois da primeira prisão romana (At 28,30-31)? Juristas e historiadores acreditam que o primeiro veredicto, depois de dois anos de prisão, possa ter sido o exílio. Paulo deveria deixar a Itália sem poder mais retornar. Provavelmente, o exílio compreendia também Jerusalém e a Judeia. Teria partido, então, e teria revisitado as comunidades de Creta, da Ásia, da Macedônia, da Acaia e da Dalmácia. Tornado a Roma devido às terríveis notícias sobre a perseguição de Nero, teria sido preso em seguida à denúncia feita por algum cristão que não compartilhava a sua visão das coisas, talvez “Alexandre, o ferreiro” (2Tm 4,14-15). Afinal, não respeitar o exílio significava sofrer a pena de morte. A Primeira carta de Clemente aos Coríntios (redigida por volta do ano 95) a isso faz referência com certo embaraço, que mal esconde a vergonha por essa execução devida muito provavelmente à traição de um cristão (“por ciúme e discórdia”).
A Segunda carta a Timóteo contém o testamento espiritual do apóstolo, escrito no momento no qual Paulo já sente vizinha a execução. Os estudiosos contemporâneos, em relação ao passado, são mais prudentes na inclusão deste escrito entre as cartas deuteropaulinas, seja pela sua grande diferença em relação às outras cartas “pastorais” (1Tm e Tt) seja pelas notícias que fazem referência à situação de Paulo e que dificilmente são detalhes de segunda mão. O que mais impressiona nas saudações desta carta é o tríplice pedido que Paulo faz a Timóteo, ao mesmo tempo em que, por duas vezes, lhe recomenda “vir depressa” (4,9) e para adiantar-se para “vir antes do inverno” (4,21).
O primeiro: “Busque Marcos e traga-o com você” (4,11). Timóteo não fará a viagem sozinho: a compartilhará com Marcos. A história deste colaborador de Paulo, autor do segundo evangelho, não é totalmente linear: os contrastes com Paulo tinham surgido desde a primeira viagem missionária e parecem ter sido motivos de tensões não sem importância, seja com Barnabé, seja com a comunidade mãe de Jerusalém, da qual Marcos provinha. Depois, porém, a ação do Espírito, o tempo e a experiência haviam curado as feridas: Marcos, há tempos, havia se reconciliado com o apóstolo (Cl 4,10; Fm 24), e agora, justamente em virtude de suas “fadigas”, poderá ser um precioso colaborador para Timóteo, ajudando-o a vencer hesitações e dúvidas. O apostolado do anúncio não pode ser levado avante “em solidão”. Somente a comunhão e a partilha fazem do anúncio um serviço habitado pelo Espírito.
O segundo: “Quando você vier, traga-me o manto que deixei em Trôade, na casa de Carpo” (4,13). Como Eliseu recebe por herança o manto de Elias (2Rs 2,13-14), assim Timóteo é o herdeiro do manto de Paulo. O pedido não está ligado somente ao inverno que se aproxima, mas parece ter um sentido simbólico: na tradição bíblica esta peça do vestuário recorda seja a veste dos pobres (Ex 22,25-26), seja a identidade da pessoa e o ministério recebido de Deus (Rt 3,15; 1Rs 11,30; Esd 9,3; Is 3,6). Não se constrói o amanhã sem apoiar-se sobre a sã tradição recebida (e tão recomendada nesta carta; cf. 2Tm 1,5-6; 3,10-12.14-15).
O terceiro: “traga-me os livros, especialmente os pergaminhos” (4,13). Livros e pergaminhos lembram as Sagradas Escrituras. Desde o início do seu ministério em Cristo, Paulo apresentou o coração do Evangelho à luz da Escritura: a experiência dos patriarcas, sobretudo de Abraão; a dos profetas, sobretudo de Isaías, Jeremias e Habacuc; a ilustrada pelos escritos sapienciais, sobretudo pelos salmos… foram as bases para mostrar a continuidade e a novidade entre a história de Israel e a vida nova em Cristo. Sem os livros e os pergaminhos, o mistério de Cristo corre o risco de permanecer exposto às falsas doutrinas a às perspectivas subjetivas de quantos tendem a mitigar a experiência do Evangelho segundo o próprio uso e costume.
Marcos, o manto e os pergaminhos. Haverá Timóteo levado tudo isto ao apóstolo em tempo, antes de sua execução? Segundo alguns, quando Timóteo chegou a Roma, Paulo já havia sido conduzido ao martírio. O discípulo, desorientado, permanece com essa tríplice herança entre as mãos e no coração: Marcos, que recorda a comunhão com os outros discípulos; o manto, que lembra o ministério de anúncio do Evangelho; os pergaminhos, que guardam as Escrituras. Paulo não existe mais, porém nas mãos de Timóteo e de todos nós deixou os fundamentos sobre os quais construir o amanhã da comunidade que, como tantas pequenas peças, compõem o mosaico da Igreja.
*Giacomo Perego, sacerdote paulino italiano, é o coordenador internacional do Centro Bíblico São Paulo.