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13/07/2020

O que é profecia?

Por Pe. Darci Luiz Marin, ssp

Estátua do Cristo morador de rua no Rio de Janeiro

Há quem afirme que a profecia foi mais efetiva no passado. Não porque hoje não haja mais necessidade de profetas mas por haver muita indiferença – apelidada de prudência – e, não raro, cooptação de quem se esperaria profecia.

Toda a história da caminhada bíblica do povo de Deus é marcada pela profecia. Os profetas atuaram entre as sombras e as luzes da história do povo de Deus. Houve falsos profetas que aderiram às forças do poder, refletindo as sombras da história da caminhada desse povo; mas também houve profetas destemidos, que refletiram as luzes dessa história. O contraste entre esses falsos e verdadeiros profetas pode ser encontrado, por exemplo, no desafio descrito em 1 Rs 18,25ss: “Então disse Elias aos (450) profetas de Baal (defensores da idolatria adotada pelo rei Acab): ‘escolham um bezerro e preparem primeiro, pois vocês são maioria. Invoquem o nome do deus de vocês….”. Nenhuma resposta! Elias (por sua vez) rezou: ‘Javé, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, todos saibam hoje que és Deus de Israel, que eu sou teu servo e que foi por tua ordem que eu fiz todas essas coisas”. E Javé atendeu! Mas o exercício da profecia traz consequências: “Elias ficou com medo, levantou-se e partiu para se salvar” (1Rs 19,3).

A maior parte dos profetas bíblicos atuaram com consciência crítica perante o poder desvirtuador do pacto original da Aliança, marca característica do povo de Deus. Frente às injustiças, Javé passava a atuar por meio dos profetas: “Eu enviei continuamente meus servos, os profetas, e eles sempre diziam: ‘não façam essas abominações (de cultuar os deuses estrangeiros), que eu odeio’” (Jr 44,4). Amós destaca-se na denúncia às injustiças sociais: “ai dos que vendem o justo por dinheiro e o necessitado por um par de sandálias; pisoteiam os fracos no chão e desviam o caminho dos pobres!” (Am 2,6-7). Sempre que se instalava a tentação de ceder aos ídolos, surgia o profeta para opor-se, resistir e reavivar o espírito do primitivo código da Aliança. Aos profetas pré-exílicos (proveniente do campo) coube o grito de denúncia contra o uso da religião, associada ao poder, para explorar e dominar – não se deixando domesticar pela corte. Com determinação e destemor os profetas ingressavam no cenário conflitivo do seu tempo para trazer luzes de esperança para o povo.

A grande corrente profética em Israel chegou até João Batista. Seu lema era: “para que ele (Jesus) cresça e eu diminua” (Jo 3,30). Jesus fez a João Batista um grande elogio: “o maior entre os nascidos de mulher” (cf. Mt 11,11; Lc 7,28).

O alcance pleno da profecia dá-se em Jesus, ao proclamar a chegada do reino de Deus. Eis o conteúdo do anúncio feito por Jesus, predito por Isaías, e que expressa o objetivo desse reino: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).

Ao longo da história da Igreja sempre houve luzes, embora com episódios de sobra, na vivência da profecia. Mulheres e homens corajosos souberam testemunhar o reino de Deus anunciado por Jesus na concretude da história. Infidelidades e até cismas não faltaram, mas também houve generosidade de muitas pessoas que souberam ser sal da terra e luz para o mundo (cf. Mt 5,13-15). O compromisso com a Boa Nova do reino nunca deixou de faltar.

Uma das grandes marcas dessa longa história de profecia encontra-se no papa João XXIII, que projetou, inaugurou e acompanhou os primeiros passos do Concílio Ecumênico Vaticano II. No discurso de abertura desse Concílio (em 11/11/1962) ele afirmava: “Parece-nos que devemos discordar dos profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse eminente o fim do mundo”. A Igreja percorreu relevante trajetória de profecia nesses últimos 50 anos – especialmente na América Latina a partir de Medellín (1963) e chegando até Aparecida (2007). Como os grandes profetas bíblicos, homens e mulheres testemunharam com sua vida a causa abraçada em espírito de profecia. Graças à boa semente desses profetas-mártires a seiva do evangelho chegou até o presente viva e eficaz.

Em 2013 o mundo acompanhou surpreso o anúncio do primeiro Papa latino-americano da história: Papa Francisco. Passaram-se mais de sete anos. A marca da profecia desse Papa vem trazendo novo vigor a toda Igreja, com alcance também fora dela. Seu programa está contido na Exortação apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho) – Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. Traços nítidos de profecia emergem dessa Exortação, entra outros: “Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o ‘cheiro de ovelha’, e estas escutam a sua voz” (EG 24). E, mais adiante: “Quando são Paulo foi ter com os Apóstolos em Jerusalém para discernir ‘se estava a correr ou tinha corrido em vão’ (Gl 2,2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gl 2,10). Esse critério importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande atualidade no presente contexto em que tende a desenvolver-se novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora” (EG 195).

Com o violento solavanco sanitário que atingiu o mundo este ano, somos desafiados a encontrar novos caminhos para a autêntica profecia. A realidade amarga trazida por essa pandemia do Coronavírus – acompanhada de enfrentamentos políticos polarizados – nos provoca a buscar saídas novas para o nosso tempo. A chegada dessa pandemia desnudou a profunda desigualdade existente entre nós. Se a pandemia atingiu a todos, está sendo mais implacável com os empobrecidos. Nesse contexto, ter presente os referenciais indicados por Jesus Cristo e assumidos por tantos homens e mulheres ao longo da história é nosso desafio! Em lugar da competição, criadora de descartados, cooperação que agrega; em lugar do prêmio ao vencedor, exaltando a meritocracia, a garantia do atendimento ao básico para uma vida digna a todos. Nunca é demasiado lembrar que é o exercício da profecia que nos faz viver as bem-aventuranças. E o critério do balanço final, no grande dia, está exatamente aí (cf. Mt 25,31-46).

Indicação

Para ter ótima visão bíblico-histórica geral desse tema, ver: José Combin, A profecia na Igreja, Paulus, São Paulo, 2008, 288pp.

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