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19/03/2020

Discípulos do Divino Mestre, os “irmãos” Paulinos

Por Frei Darlei Zanon, ssp*

Neste dia de São José, patrono dos Discípulos do Divino Mestre, o Centro Vocacional Paulino, apresenta um pouco sobre esses Apóstolos da Comunicação.

Gostaria de começar este artigo recordando que na vida paulina há uma só missão, um só apostolado, uma só consagração, uma só identidade… Se aqui falaremos da vocação do “discípulo do Divino Mestre” não é em oposição àquela do sacerdote, mas apenas para enfatizar que no exercício desta única identidade paulina existem duas possibilidades ou expressões: ordenada e não-ordenada (cf. A identidade do paulino na sua dúplice expressão sacerdote-discípulo). Ambas vocações são plenamente “paulinas” e igualmente “consagradas”. A nenhuma delas falta algo, pois o sacerdote é também irmão na comunidade e discípulo de Cristo, assim como o discípulo é sacerdote porque batizado e consagrado a Deus (“povo de sacerdotes”). Portanto não existe nenhum “só irmão” ou “só padre” na Sociedade de São Paulo, mas sim PAULINO(s), apóstolo-consagrado para o apostolado da comunicação. Tendo clara esta questão, tentaremos nas próximas linhas apresentar alguns elementos que auxiliem na promoção da expressão “laical” da vocação paulina e da vida religiosa, muitas vezes incompreendida ou ofuscada, atualmente quase desconhecida na Igreja e na sociedade.

O nosso Fundador iniciou o seu projeto de evangelização (a Família Paulina) já com três ramos específicos: religioso masculino (1914), religioso feminino (1915) e cooperadores (1917). E desde os seus primeiros escritos o ramo masculino é apresentado com dupla dimensão: sacerdotes (religiosos ordenados) e outro grupo chamado inicialmente “operários” (religiosos não ordenados), que com o tempo o próprio Alberione começou a identificar como “discípulos do Divino Mestre”. Explicando quem são estes discípulos do Divino Mestre, o próprio Pe. Alberione assim se exprimiu na festa de São José de 1937: “A posição dos discípulos na Pia Sociedade de São Paulo não é de simples coadjutores… Os discípulos compartilham o mesmo apostolado e a mesma maneira de atender à perfeição; eles gozam dos mesmos direitos e privilégios essenciais; levam a mesma vida religiosa. Em alguns aspectos, os discípulos precedem, em outros eles se igualam, em outros seguem” (cf. Carissimi in San Paolo-CISP, p. 87). Diferente do que acontecia em outras congregações, que dividiam os consagrados em espécies de classes diferentes, Alberione sempre viu o discípulo como um verdadeiro e pleno Paulino (cf. por exemplo, o Boletim San Paolo de janeiro de 1965, em CISP pp. 1447-1453). Diferenciava, no entanto, a missão-apostolado da dimensão do serviço da autoridade. É interessante, portanto, partir desta diferença para aprofundar a nossa reflexão.

Como congregação “clerical” (cf. Constituições n. 2), o governo deve ser exercido pelo clero, ou seja, por ministros ordenados. Exatamente por isso os discípulos não assumem cargos como superior local, provincial ou geral, salvo em casos excepcionais como “delegado”. O governo é um serviço exclusivo do clero, como pede o Direito Canônico (cf. cân. 588). Algo muito diferente, porém, é o apostolado, o coração do nosso ser consagrado e da nossa missão. Em relação ao apostolado, o Documento final do nosso Capítulo Especial de 1969-71 é muito claro, recordando que “no orgânico apostólico da Congregação, a presença do discípulo é estreitamente complementar àquela do sacerdote. É aberta, sem exclusões ou preclusões, toda a gama de atividades apostólicas compreendidas na criação, execução técnica e difusão, segundo os dons pessoais, a preparação e a experiência” (n. 34). Isso porque “sacerdotes e discípulos, unidos na mesma vocação religiosa, também estão unidos na missão de difundir ao mundo a boa notícia de Cristo, associados no mérito e no prêmio que pertence aos semeadores do Evangelho e sobretudo na busca dos mesmos objetivos, isto é, a santidade na comum profissão religiosa, que esplende como sinal de credibilidade para a pregação específica deles. (…) Nem o sacerdote nem o discípulo, sozinho, pode cumprir todas as exigências do apostolado, resultando claras as razões da mútua integração entre os membros no único corpo social e místico desta pequena Igreja que é a nossa Congregação” (n. 308s).

Inicialmente, quando ainda sistematizava a sua visão de equipolência entre pregação escrita e pregação oral, ou seja, enquanto buscava clarificar a sua intuição inovadora que dava ao apostolado das edições (pregação “escrita”) o mesmo valor sacramental, querigmático e soteriológico da pregação oral, Pe. Alberione pensava em uma certa divisão no apostolado: os sacerdotes seriam os “escritores”, responsáveis pela primeira fase do apostolado (redação), enquanto os discípulos seriam os “multiplicadores da Palavra”, responsáveis pela segunda (produção) e terceira fases (difusão). Daí também o desejo sempre manifesto pelo Fundador de que a Congregação tivesse 1/3 de sacerdotes e 2/3 de discípulos. Para compreender esta divisão, precisamos contextualizar a questão. Estamos no início do século XX, numa Igreja pré-Vaticano II, onde a constituição da Igreja é vertical, ou seja, hierarquizada  Para dar crédito e reconhecimento à sua obra, que dava os primeiros passos, pensou em confiar a criação de conteúdos ao clero, únicos “autorizados” para tal função docente, isto é, legítimos continuadores da missão evangelizadora dos apóstolos porque unidos simbolicamente através da do Sacramento da Ordem.

Com o Vaticano II e a sua nova concepção de Igreja – e mais especificamente com a clarificação do “sacerdócio comum dos fiéis” (povo de sacerdotes) e da visão do sacerdócio não como “poder” mas serviço –, também a Congregação compreendeu que ambos (sacerdotes e discípulos) são “pregadores”, ambos participam da ação evangelizadora da Igreja, ambos realizam a mesma missão. “Sacerdotes e discípulos professam todos os mesmos votos religiosos; constituem uma comunidade de vida, de oração e de apostolado; regem-se pelas mesmas normas; participam dos mesmos benefícios espirituais e possuem direitos e deveres comuns, exceto os que derivam das ordens sagradas. (…) O Fundador entendeu a união entre sacerdotes e discípulos, que se constituem mutuamente ‘Paulinos’ e que implica a corresponsabilidade em tudo o que se relaciona com o apostolado, como uma das características peculiares ou ‘novidades’ da congregação”, recordam as nossas Constituições (n. 4-5).

A evolução da concepção paulina de “escritores” a “editores” – já prefigurada pelo próprio Pe. Alberione, que em 1933 escreve o manual “Apostolado tipográfico” que logo em 1944 se torna “Apostolado das edições” – ajuda a compreender também a evolução no reconhecimento do discípulo como plenamente corresponsável e coparticipante na missão da pregação escrita. Essa única identidade que une sacerdotes e discípulos vem bem apresentada nas nossas recentes Linhas editoriais (2018, n. 1.2), que diz: “O Paulino é um homem chamado por Cristo e consagrado para ser apóstolo da comunicação, para ser essencialmente um “editor”, aquele que dá forma a uma experiência, que escreve ou traduz a sua vida pessoal e comunitária de fé e de encontro com Cristo em palavras, textos, imagens, sons, vídeos, bytes ou em qualquer outra forma que a técnica gradualmente desenvolve; mas também em experiências e iniciativas nas quais toda linguagem está a serviço da inculturação do Evangelho com e na comunicação. Aquele que, a exemplo de Maria, dá (edit) o Salvador ao mundo”. Portanto, seja sacerdote seja irmão, todos são chamados a ser “editores”; chamados e consagrados para “dar” Jesus ao mundo através das diversas linguagens e formas de comunicação.

O ponto central é “como ser editor?”, ou seja, como ser verdadeira testemunha da beleza e alegria do Evangelho, em resposta à chamada que cada um recebeu e que assume plena, livre e alegremente. Antes de ser padre ou irmão somos “religiosos”: batizados e consagrados na vida religiosa para “viver e dar ao mundo Jesus Mestre, Caminho, Verdade e Vida”, ou seja dar (edit) o Evangelho na cultura da comunicação. Se não se compreende esta complementaridade e unidade entre discípulos e sacerdote na Sociedade de São Paulo, não se compreende a complementaridade e a convergência da inteira Família Paulina no seu projeto unitário de evangelização na cultura da comunicação, não se compreende a centralidade da comunicação no projeto alberioniano de “nova, longa e profunda evangelização” (cf. boletim Unione Cooperatori Buona Stampa, 20 agosto 1926).

Para poder realizar em modo excelente esta missão, deve ser garantida ao Paulino, tanto ao sacerdote quanto ao discípulo, uma adequada formação. No passado eram constituídos grupos diferentes de formação, algo que não faz sentido hoje, visto que todos os candidatos devem receber a mesma formação inicial, como vem muito bem expresso nos Documentos Capitulares de 1969-71: “Predispor uma formação de base comum a todos os membros” e “dar a possibilidade aos irmãos discípulos de prosseguir nos estudos de especialização de nível superior” (n. 27s). Nos nn. 567ss o Documento é ainda mais preciso: “O discípulo do Divino Mestre, a fim de apresentar Cristo digna e efetivamente à humanidade, deve enriquecer-se com adequada cultura geral e competência profissional. De fato, nosso apostolado assume formas e instrumentos muito diferentes e é condicionado por leis estritas, que frequentemente impõem formação altamente qualificada. (…) Os candidatos sejam habilmente orientados e esclarecidos em suas escolhas pelos responsáveis da promoção vocacional e profissional. Estes, com base nas aptidões do sujeito e na pluralidade de tarefas da vocação própria do discípulo Paulino, cumprirão seu dever com a devida prudência, de modo a salvaguardar sempre as necessidades legítimas do candidato e sua inserção gradual e efetiva nas atividades apostólicas. (…) É absolutamente indispensável para os discípulos que a sua formação religiosa, apostólica, doutrinal e técnica se prolongue por todo o tempo dos seus votos temporâneos”.

A escolha entre estas duas expressões da identidade paulina deve é feita ao final do noviciado, por ocasião da primeira profissão, mas de maneira definitiva no momento da profissão perpétua pois durante o período do juniorado pode haver a mudança de um a outro estado. As nossas Constituições assim especificam: “Antes da profissão, os noviços façam os exercícios espirituais conforme o art. 60.1, e apresentem uma petição escrita ao superior maior, na qual exprimam a sua vontade decidida de se consagrarem livremente a Deus na forma de vida própria da Sociedade São Paulo e peçam admissão nela como clérigos ou discípulos” (n. 120).

Pensando no carro paulino, a complementariedade e unidade entre sacerdotes e discípulos é visível e concreta também na pobreza e na piedade, além da formação e apostolado como vimos até aqui. A dimensão profética, por exemplo, típica da vida consagrada, deve caracterizar todos os Paulinos, seja ele sacerdote ou discípulo. O Papa Francisco recorda que “os religiosos seguem o Senhor de uma maneira especial, de modo profético; um religioso não deve jamais renunciar à profecia” (29 de novembro de 2013) e que “a profecia é anunciar às pessoas que existe um caminho de felicidade, de grandeza, uma via que te enche de alegria, que é precisamente a estrada de Jesus; (…) a profecia é dizer que existe algo de mais verdadeiro, mais bonito, maior, melhor ao qual todos somos chamados” (1° de fevereiro de 2016). Não podemos deixar de enfatizar, no entanto, que se de um lado o aspecto sacramental e cultual é mais íntima e ontologicamente ligado ao sacerdote, de outro a dimensão profética é íntima e ontologicamente ligada à vida consagrada, portanto diretamente ligada à vida do irmão. Evidentemente nem um nem outro é detentor exclusivo de qualquer dimensão, pois o seguimento de Cristo, que caracteriza e fundamenta a vida consagrada, se exprime na tríplice dimensão sacerdotal, profética e régia assumida por todos os consagrados através dos votos e da “imitação” da vida casta, pobre e obediente de Cristo.

No campo da oração os discípulos são particularmente inspirados por São José, que é aquele que com humildade contempla e ao mesmo tempo cuida do Menino Jesus. José é modelo de oração humilde, vigilante e sobretudo reparadora. A dimensão da “reparação” foi particularmente confiada pelo Fundador aos discípulos (e às Pias Discípulas do Divino Mestre), como um ministério que devem exercer cotidianamente assim como o sacerdote celebra a missa todos os dias. Os irmãos da Sociedade São Paulo devem rezar de modo particular pela reparação de todos os males (“erros e escândalos”, nos recorda o nosso “ofertório paulino”) cometidos através do mau uso dos meios de comunicação, mas concretizam esta “reparação” também através da sua vida e apostolado. Hoje são tantos os pecados ou males, intencionais ou não, no mundo da comunicação, sobretudo em um tempo em que se sobressaem as fake news e uma comunicação tendenciosa e “manipulativa”. Neste sentido, um aspecto que deveria ser mais enfatizado da reparação é a formação, ou seja, a dimensão pedagógica ou docente da missão paulina. Também o irmão discípulo é chamado a educar as novas gerações para que possam habitar de modo autêntico e coerente o mundo digital e assim serem midiaticamente conscientes e críticas.

Sem jamais esgotar o argumento sobre a vocação do irmão na Sociedade São Paulo podemos enfim recordar que o discípulo deve ser na Congregação e na Igreja um promotor de comunhão, como enfatiza muito bem o documento da CIVCSVA intitulado Identidade e missão do irmão religioso da Igreja (2015). É sua função específica valorizar a dimensão da comunicação como comunhão, assim como expressa as raízes etimológicas e a origem do termo: communicatio significa “ação de partilhar”, pôr em comum, gerar comunhão. O irmão, portanto, é chamado a viver a comunicação não como “púlpito”, mas como “ágora”, aquele espaço público da antiga Grécia onde a vida cotidiana acontecia e que hoje é metáfora para representar a dinâmica das redes sociais e da comunicação atual, verdadeiro “mercado” ou praça onde todos se encontram e habitam. O discípulo deve ser símbolo desta comunhão, na comunidade e na sociedade, sobretudo através do seu empenho apostólico. Também nesta função é inspirado por são José, mas particularmente pelo nosso patrono são Paulo, modelo exímio de comunicador. Paulo não foi apenas um escritor de cartas, mas um comunicar no mais amplo sentido do termo: ia ao encontro das pessoas, estabelecia relações, conquistava a confiança, criava pontes e derrubava barreiras, tecia uma rede de colaboradores e comunidades, etc., tudo isso para testemunhar Cristo e anunciar o Evangelho.

A vocação paulina é muito bela e atual. Compreendendo e promovendo bem a sua dupla expressão, ressaltaremos ainda mais sua importância e o contributo que pode trazer para a Igreja e o mundo atual. Mas este percurso só pode ser feito em comunhão e sinergia, superando qualquer forma de clericalismo ou classicismo que só conduz à divisão e à competição. Também aqui temos muito a aprender de Paulo, para crescermos como sacerdotes e discípulos, mas antes de tudo como Paulinos.

* Frei Darlei Zanon, religioso paulino, atualmente em Roma como Conselheiro geral.