Blog

14/04/2021

A teologia e a prática do voto de pobreza

Por Eligelson Barroso, Noviço Paulino

Primeiros votos religiosos de Manoel Gomes, ssp

Introdução

O sentido do voto de pobreza fundamenta-se, mais uma vez, no amor. Assim como os demais conselhos evangélicos – castidade, obediência – a pobreza baseia-se no amor, ou seja, no mesmo amor que fez Cristo doar-se em favor de todos, renunciando a si mesmo e assumindo a condição humana. Amar, em sentido mais amplo, é doação, é ter a capacidade de sair de si e entregar ao outro. “A teologia do voto de pobreza, de fato, começa no amor casto da Trindade à humanidade. O Pai criou todo o mundo material por amor. […]” (KEARNS, 2016, p. 40). Deus criou tudo por amor. E o significado da pobreza ganha sentido nesse amor-doação que não retém nada para si, mas entrega livremente os dons da criação ao homem.

É de Deus e igualmente do amor-doação da Trindade que vem o modelo perfeito, isto é, a pobreza que é sinônimo de entrega, de doação e amor. O individualismo, que caracteriza o mundo e as diversas relações sociais, deve ser iluminado por esse testemunho de doação, embora nem sempre seja uma tarefa fácil, uma vez que as estruturas econômicas e sociais, que são apresentadas no mundo de hoje, rechaçam isso que se chama bondade e doação de si em favor dos outros. “[…] O voto de pobreza tenta viver este aspecto de doação como profecia neste mundo fechado em si mesmo” (KEARNS, 2016, p. 41). A partilha sempre foi considerada ato de generosidade, portanto doação que resume o sentido de pobreza. Prover para que todos, sem distinção, tenham o necessário para viver com dignidade.

  1. O projeto criador e a origem do pecado

O projeto que Deus sonhou para as suas criaturas foi manchado pelo pecado. O pecado entrou no mundo e desfez a harmonia da criação entre o cosmo, a humanidade e Deus. “[…] O pecado original foi o gesto de orgulho e de desamor a Deus e à humanidade. E onde há orgulho e desamor não pode existir a pobreza evangélica” (KEARNS, 2016, p. 43). A soberba e a desobediência foram a ruína da humanidade, sobretudo dos primeiros pais. Eles tinham tudo à sua disposição, mas, ainda assim, não aceitaram o projeto de Deus praticando o amor-doação de si mesmos na integralidade da pobreza, a exemplo do Criador que entregou a eles os dons da criação por amor. Ao contrário, desejaram eles também ser deuses e não somente criaturas. O resultado foi o pecado, que feriu de morte a humanidade e desfez toda a harmonia da criação.

Vivendo na independência do Criador, o homem e a mulher passaram a glorificar outros deuses: do poder, da posse, do dinheiro. A gratuidade e a bondade se esvaíram frente aos novos modelos de subsistência. E assim cresceu a desigualdade, a marginalidade e a exploração do mais fraco e do mais pobre. “[…] Desde esse momento houve a crescente desigualdade e o abismo entre os que têm e os que não têm” (KEARNS, 2016, p. 44). Infelizmente, o atual modelo de sociedade e de mundo moderno engoliu, explorou e marginalizou os mais pobres. Não existe gratuidade e muito menos dignidade quando se está jogado nas calçadas ou debaixo dos viadutos das grandes cidades. Estão lá porque estão na condição de drogados, porque são sem tetos; estão lá não porque são vagabundos e por isso não querem trabalhar, estão lá porque foram esquecidos na sua condição de humanidade e nem mesmo podem ter o essencial para viver. É triste, é desumano, é desolador, mas o que fazer quando os olhos já se acostumaram com essa realidade? Indignação e sensibilidade acabaram tornando-se apenas palavras e pouca ou nenhuma ação.

  1. A encarnação do Verbo

O mistério da encarnação é a melhor ilustração da pobreza do Verbo. Por amor ao Pai e ao seu projeto criador, o Verbo desceu de sua condição e esvaziou-se para encarnar-se como criatura humana (cf. Fl 2,7). “[…] O Verbo precisou praticar primeiro a pobreza no ato de descer e no ato de esvaziar-se, para conseguir realizar este ato de salvação […]” (KEARNS, 2016, p. 46). O amor que renuncia à própria condição e doa-se livremente pela criação é o melhor testemunho de pobreza, pois, desde o início, Deus sabia que sua criatura amada não seria fiel ao projeto de amor, isto é, “[…] a encarnação de Cristo foi no fundo um ato de pobreza; pobreza de fato e pobreza de espírito […]” (KEARNS, 2016, p. 46). Mas, ainda assim, quis salvar a todos oferecendo-se a si mesmo na pessoa do Verbo. Palavra que outrora tudo havia criado, quis descer e resgatar a sua criação em um gesto de amor-doação que ultrapassou a própria morte e devolveu a dignidade de filhos amados.

A eucaristia é o ponto ápice de todo o mistério de amor, de entrega e doação, que Deus já fez pela humanidade. O Senhor, na pessoa do Cristo, consciente de que ia entregar a própria vida para resgatar da morte os que estavam condenados, quis deixar como memorial perpétuo o seu sacrifício com a oblação das espécies do pão e do vinho, isto é, sinais visíveis do que seria a oferta de seu corpo e sangue na cruz. “Isto é o meu corpo, que é entregue por vocês. Façam isto em memória de mim” (Lc 22,19). A eucaristia é o melhor e o mais sublime exemplo de pobreza; o Cristo, a exemplo do Pai, doa-se totalmente em sacrifício de amor e redenção, e na instituição da eucaristia pede que seus discípulos façam o mesmo. “[…] Cristo nos deu um mandamento de amor para partilharmos tudo o que somos e temos com os que precisam de nós. E a eucaristia é o compromisso da pobreza evangélica […]” (KEARNS, 2016, p. 48). A eucaristia torna-se compromisso de doação e pobreza com os irmãos.

  1. A prática da pobreza na vida religiosa

Assim como Cristo se fez pobre com os pobres, pela sua encarnação e entrega na cruz, a pobreza evangélica torna-se sinal de compromisso do consagrado(a) com os pobres, excluídos e marginalizados. “[…] Cristo também fez uma opção para proteger os pobres sem voz. Ele veio para libertar os sofrimentos de seu povo. Pobreza evangélica compromete o(a) consagrado(a) com os pobres” (KEARNS, 2016, p. 49). No entanto, é preciso compreender que esse compromisso com os pobres não deve ser entendido como um colaborar para que os pobres continuem pobres e excluídos, mas sim deve ser sinal de profecia e denúncia por dignidade e mais humanidade, ou seja, lutar para que aqueles que são notoriamente esquecidos tenham os seus direitos essenciais garantidos.

O voto de pobreza de um consagrado, na perspectiva da vida religiosa, não pode ser entendido como um mero desapego de gostos e preferências materiais. Essa dimensão também é importante e necessária se o consagrado deseja ter um coração livre para corresponder com mais eficiência ao seu projeto de vida. Mas, o voto de pobreza exige e desafia para algo além das coisas materiais e, nesse sentido, estimula a praticá-lo na própria comunidade religiosa. “[…] Todos os dons e talentos de um consagrado(a) são livremente colocados em comum para o bem dos outros. Nada fica somente com ele/ela […]” (KEARNS, 2016, p. 54). Se a partilha realmente acontece dentro dessas circunstâncias, ela deve corresponder a todos os dons e talentos que cada pessoa carrega consigo, ou seja, no serviço e na ajuda aos irmãos isso fortalece anima e dá sentido de pertença na construção de uma verdadeira fraternidade.

Os consagrados(as) são chamados a dar testemunho da pobreza evangélica que ressalta a importância da doação, do amor e da gratuidade. Testemunhar a pobreza como Cristo testemunhou não requer viver uma condição de miséria, pois a falta do essencial, para a existência humana, coloca as pessoas verdadeiramente pobres em uma situação degradante quando, na realidade, Deus, por meio da doação de si mesmo, procurou resgatar a dignidade humana. “[…] A pobreza material entre os verdadeiros pobres também significa a falta de opções, porque a um pobre falta o necessário para poder fazer opções” (KEARNS, 2016, p. 64). Viver a pobreza evangélica concreta e eficazmente é inserir-se na realidade na qual está se realizando a missão de consagrado. Esse torna-se o gesto de renúncia das preferências e gostos, inculturando-se na própria realidade do povo de Deus.

  1. O voto de pobreza a partir da perspectiva institucional

A realidade e as estruturas do convento mostram o quanto os religiosos podem se deixar levar pela comodidade, esquecendo-se da própria essência do ser pobre de fato. A verdade é que a grande maioria dos consagrados(as) são provenientes de famílias pobres, simples, e que fazem da labuta do trabalho diário seu meio de sobrevivência. Nesse sentido, Pe. Lourenço (2016, p. 69), afirma: “[…] mais uma vez, a pobreza começa dentro e não fora de nós”. Essa afirmação enfatiza as origens do ser pobre de cada consagrado(a) e reafirma que não é necessário buscar exemplos distantes da prática da verdadeira pobreza, basta olhar para as próprias origens, para o jeito como as famílias vivem que logo se dará conta que é preciso fazer o movimento de dentro para fora, ou seja, buscar a verdadeira essência da simplicidade que já habita em cada consagrado(a).

Existe um aspecto da vivência do voto de pobreza que ainda é vivido de modo a formar religiosos infantilizados. Essa realidade, que ainda perdura em alguns institutos, se fundamenta na antiga tradição da imagem do superior(a) que se responsabilizava pela administração da comunidade, dos bens e das pessoas. Essa comodidade causou certo conforto para alguns religiosos(as) que, por respeito a esse antigo sistema, se privam da responsabilidade de também eles serem corresponsáveis pelo bem comum do instituto. “[…] Sem dúvida, ao menos do ponto de vista de formação humana, esse sistema criou certa infantilidade. O religioso/a não ficou livre para escolher, e pior, ser responsável por suas opções. […]” (KEARNS, 2016, p. 71). Ou seja, acostumaram-se a tudo girar em torno dos superiores(as), cultivando uma obediência, por vezes, cega. De certo modo, o modelo, já incutido a séculos, deturpa o verdadeiro sentido teológico do voto de pobreza.

Conclusão

Para além daquilo que já foi elencado, como aspectos do voto de pobreza, vale ressaltar a dimensão apostólica. A pobreza no âmbito apostólico é exercida na partilha de dons e talentos. Antes do Concílio Vaticano II, as comunidades religiosas exercitavam essa condição da pobreza evangélica no interior da própria comunidade, isto é, servindo e ajudando os coirmãos. Após o Vaticano II esse exercício passou a ser descentralizado do interior das casas religiosas para além das portas que circundavam o convento, ou seja, era necessário sair e testemunhar essa realidade na vida de todas as pessoas que não faziam parte ou estavam presente no contexto religioso. Ainda hoje esse exercício é cada vez mais exigido, sobretudo quando se fala no conceito de Igreja em saída do Papa Francisco. Porém, o Pe. Lourenço alerta (2016) que esse novo movimento surte um efeito contrário para o religioso e a comunidade religiosa no que diz respeito à fraternidade entre os irmãos religiosos, sendo muito mais fácil ser competente lá fora, mas péssimo construtor de relações dentro da própria comunidade, que também deveria contribuir como refrigério para esse operário da vinha.

Referências bibliográficas

Bíblia. Português. Bíblia pastoral. São Paulo: Paulus, 2020.

KEARNS, Lourenço. Teologia do voto de pobreza. Aparecida – SP: Editora Santuário, 2016.