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29/03/2024

Sofrer com Cristo

Por Cl. Manoel Gomes, ssp

Nestes dias somos convidados a recordar os mistérios centrais da nossa fé. A liturgia introduz-nos, através de textos bíblicos e eucológicos, no mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus. Mesmo que o centro de todo o ano litúrgico seja a ressurreição de Jesus, não se pode negar a evidência que o tema do sofrimento tem, especialmente na Sexta-feira Santa. Olhando para o crucificado, certamente nos deparamos com muitas perguntas a respeito do sofrimento: Por quê? De onde vem? Deus se agrada dele? Deveríamos nos conformar?

1 O sofrimento na Bíblia

O tema do sofrimento encontra diferentes abordagens na Bíblia. Segundo o Antigo Testamento, o sofrimento é um mal que não deveria existir. Existem muitos textos do Antigo Testamento, especialmente os salmos, que pedem a Deus a libertação de todo tipo de sofrimento. Um dos componentes da esperança messiânica era precisamente o desejo de um mundo sem sofrimento. “Todos os infortúnios públicos e privados, a seca, a perda de propriedades, os lutos, as guerras, a escravidão, o exílio, são sentidos como males dos quais se espera ser libertado nos dias do Messias”.[1]

Enquanto outros povos eram politeístas e, portanto, podiam atribuir o mal a um deus inimigo do seu deus, Israel teve que resistir a esta tentação e procurar formas de compreender como o mesmo Deus pode fazer o bem e causar infortúnios (Is 45.7). Serão os primeiros passos de um longo caminho de mudança de perspectiva: “Provados pelo sofrimento, mas apoiados pela fé, os profetas e os sábios entram progressivamente ‘no mistério’ (Sl 73,17). Descobrem o valor purificador do sofrimento, como o do fogo que liberta o metal das suas impurezas (Jr 9,6; Sl 65,10), o seu valor educativo, o da correção paterna (Dt 8,5; Pv 3,11; 2 Cr 32, 26,31) e acabam por ver a prontidão do castigo como um efeito da benevolência divina (2 Mac 6,12-17; 7,31-38)”.[2]

O Novo Testamento se afasta claramente do Antigo no que diz respeito ao tema do sofrimento. O julgamento de Deus é transferido para a vida após a morte (com algumas exceções como Ananias e Safira em Atos 5.1-10) e, portanto, o mal e o sofrimento não são punição pelos pecados cometidos.

            Jesus é o verdadeiro homem das dores. A tradição cristã sempre reconheceu nele a encarnação do servo do Senhor, um tempo conhecido como servo sofredor. Ele é sensível a todo tipo de sofrimento e fica profundamente comovido com o drama dos sofredores. Com curas e ressurreições, Jesus vence o mal sem, contudo, suprimir o sofrimento e a morte do mundo. No caso da paixão, Jesus experimenta injustamente o poder do mal. A paixão concentra todo o sofrimento humano possível, desde a traição até o abandono de Deus (Mt 27.46).

O tema da inevitabilidade e da finalidade do sofrimento está muito presente nos escritos paulinos. Em suas cartas, Paulo fala de sofrimento e aflição mais de sessenta vezes. “O tratamento mais extenso deste tema encontra-se em 2 Coríntios, onde Paulo defende a sua condição de apóstolo contra aqueles que afirmavam que o seu sofrimento punha em causa a sua legitimidade (ver especialmente 2Cor 1,3-11; 2,14-17; 4,7-12; 6,3-10; 10-13)”.[3] Para Paulo, os seus sofrimentos faziam parte do plano de salvação de Deus porque revelavam o poder divino e mostravam a realidade da cruz e da ressurreição na sua própria vida.

Paulo não vê o sofrimento apenas como algo a ser suportado, mas como uma verdadeira graça: “[…] no que diz respeito a Cristo, a vós foi dada a graça não só de crer nele, mas também de sofrer por ele” (Fil. 1, 29). Para aceitar o sofrimento como um dom precisamos da fé que é graça. A expressão “sofrer por Cristo” não significa que o sofrimento humano lhe traga alguma vantagem, mas significa sofrer “por amor de, por causa de” Cristo.

É claro e evidente para o Apóstolo que o sofrimento não nos separa do amor de Cristo (Rm 8,35-39). Com efeito, se sofrermos com ele, participaremos da sua glória (Rm 8,17-18). Alguns estudiosos sustentam que o pensamento paulino sobre o sofrimento encontra seu ambiente natural na tradição do Antigo Testamento do sofredor justo: “O objetivo de Paulo é, portanto, apresentar-se como sofredor na esteira do justo do Antigo Testamento e, portanto, acima de tudo, na esteira do próprio Cristo e, portanto, deixar claro que Ele foi um daqueles que demonstraram a sua fé perseverando na adversidade”.[4]

A partir do que vimos, podemos afirmar que depois da ressurreição de Jesus o sofrimento humano não foi apagado, mas permanece como caminho a seguir para todos os seus discípulos. Mas há algo diferente: o cristão vê todo o sofrimento através de Jesus Cristo. O sofrimento do cristão é participação no sofrimento do seu Mestre.

2 O apostolado do sofrimento

            Padre Alberione conheceu muito de perto o sofrimento. Todos sabemos o quanto ele sofreu ao longo da vida devido à sua saúde frágil. Mas não só isso. Como pai e fundador de uma grande família religiosa, o sofrimento o visitou muitas vezes. Além de todos os problemas que teve de enfrentar, pensemos, por exemplo, nas perdas que sofreu, como a do Mestre Giaccardo, do padre Federico Muzzarelli e da Primeira Mestra.

Por isso, padre Alberione não fala do sofrimento como mero observador. Esta é uma realidade palpável ao longo de sua trajetória de vida. Neste ponto o Primeiro Mestre esteve muito próximo do pensamento do Apóstolo Paulo e viu o sofrimento como participação nos sofrimentos de Cristo e como um verdadeiro apostolado. Aqui nos concentraremos apenas em alguns pensamentos do fundador sobre o apostolado do sofrimento.

Nas suas anotações, que datam do ano de 1908, ele escreveu: “O Espírito Santo diz: se você fizer o bem nesta vida, você o encontrará na morte, você será feliz na eternidade: é verdade que aqui você sofrerá alguma coisa, mas depois desfrutará para sempre, tenha coragem: minha graça te ajuda” (caderno 1, p. 17). Nesta afirmação parece que ouvimos o apóstolo Paulo dizer: “Porque considero que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória futura que nos será revelada” (Rm 8,18).

Em 1933, falando da importância das ilustrações para o apostolado da imprensa, padre Alberione referia-se à “satisfação cristã das almas que sofrem por Deus e trabalham para ele” (Apostolado da Imprensa, p. 69). Na sequência o Primeiro Mestre usa os mártires e confessores como exemplos dessas pessoas que sofrem por Deus. Mas ele certamente estava pensando em muitos outros tipos de sofrimento que atingem aqueles que praticam o bem.

No primeiro capítulo do seu livro Maria, Rainha dos Apóstolos, publicado pela primeira vez em 1948, padre Alberione fala de Maria como apóstola. Para introduzir o tema, apresenta os diferentes apostolados presentes na Igreja. A riqueza desta passagem é tal que nos sentimos obrigados a relatá-la na íntegra:

O primeiro apostolado é a vida interior. É necessário e insubstituível; obrigatório para todos. Quem trabalha pela sua própria purificação e santificação trabalha para todos. Cada dívida ou defeito removido torna a Igreja mais perfeita e gloriosa; cada virtude adquirida confere-lhe um novo esplendor diante do Pai.
Da Igreja Católica, como de Cristo, o Pai, olhando do Céu, pode dizer: “Este é o meu Filho amado em quem me comprazo: ouvi-o”.
Nenhum ser, depois da augusta Trindade, é tão vivo e atuante como o Corpo místico de Jesus Cristo, a Igreja.
Segundo apostolado: o sofrimento, que realiza, no que diz respeito aos indivíduos, o que falta, ou seja, a aplicação da paixão.
Terceiro apostolado: o exemplo. As virtudes tornam os dogmas, como os milagres, credíveis para os indivíduos; tornam a vida cristã amável; eles irradiam a graça do coração.
Quarto apostolado: a oração, que coloca a omnipotência de Deus ao serviço do homem.
Seguido: o apostolado da palavra e das publicações; o apostolado das missões, dos jovens, das escolas etc. (RdA, p. 8-9, grifo nosso).

Para nós, que estamos sempre preocupados com o que temos que fazer, a ordem dos apostolados seguida pelo Primeiro Mestre pode nos atingir duramente. Na verdade, ele parece mais interessado com o que somos, para somente depois chegar ao que podemos fazer. O sofrimento é, portanto, visto como uma aplicação da paixão do Senhor na vida de cada cristão. Obviamente não é algo que se procure, mas não se pode sequer imaginar uma vida seguindo Jesus sem a experiência do sofrimento. Padre Alberione, porém, não entende esta experiência como algo passivo, mas como um apostolado, isto é, como uma verdadeira missão.

O que faz com que o sofrimento se torne apostolado não é a sua origem nem a sua intensidade, mas a forma como cada pessoa o acolhe e ao mesmo tempo o oferece. Na quarta semana dos exercícios espirituais de 1960 em Ariccia, na sua última instrução, o Primeiro Mestre fala dos vários apostolados (seguindo uma ordem diferente da que vimos antes) e defende a ideia do sofrimento como sacramento: “O Pe. Faber tem esta expressão: ‘O sofrimento é o maior sacramento’. E é na verdade o que dá valor aos outros sacramentos. E todos temos muitos sofrimentos para oferecer ao Senhor em espírito de apostolado” (UPS IV, 275).

Para refletir

Tudo o que vimos deve nos ajudar a viver melhor os dias do Tríduo Pascal, especialmente a Sexta-Feira Santa. O sofrimento de Cristo nos remete aos nossos próprios sofrimentos. Não podemos esquecer que foi exatamente através do sofrimento que o Senhor nos salvou. Portanto, devemos vivenciar o sofrimento com o espírito correto para que ele se torne redentor.

Falando em sofrimento, o nosso pensamento dirige-se aos doentes, especialmente àqueles que experimentam a experiência da dor nas nossas enfermarias. Não podemos esquecer que eles também são apóstolos. Eles têm a oportunidade de viver intimamente unidos com Cristo. Na primeira mensagem que o Papa Francisco escreveu para o Dia Mundial do Doente (6 de dezembro de 2014), disse:

A Igreja reconhece em vós, queridos doentes, uma presença especial de Cristo sofredor. É assim: ao lado, ou melhor, dentro do nosso sofrimento, está o de Jesus, que carrega conosco o seu peso e revela o seu significado. Quando o Filho de Deus subiu à cruz, destruiu a solidão do sofrimento e iluminou as suas trevas. Somos assim colocados diante do mistério do amor de Deus por nós, que nos infunde esperança e coragem: esperança, porque no desígnio de amor de Deus até a noite da dor se abre à luz pascal; e coragem, para enfrentar todas as adversidades em sua companhia, unidos a ele.

Segundo Francisco, existe uma “solidariedade” no sofrimento, ou seja, Cristo está sempre conosco mesmo e – podemos dizê-lo – especialmente quando sofremos. Se tivermos a certeza de que Jesus está sempre ao nosso lado, encontraremos forças para viver com tranquilidade os momentos dolorosos da nossa vida. De fato, a serenidade é uma característica daquelas pessoas que compreendem o valor do sofrimento e são capazes de olhar a vida sempre a partir de Jesus e do seu exemplo. Essas pessoas são capazes de comunicar o amor de Deus mais do que muitos discursos tecnicamente perfeitos.

Mas o sofrimento não é apenas físico. Existem muitos outros modos. Pensemos, por exemplo, na vida comunitária: quanto sofrimento essa nos causa. Suportar as nossas limitações e as dos outros não é nada agradável. Seria muito mais cômodo se pudéssemos organizar os nossos próprios horários em vez de seguir a disciplina que a comunidade exige de nós. Compartilhar a vida com pessoas que pensam de forma diferente e até oposta à nossa não é nada agradável. Todas estas são circunstâncias que podemos viver com espírito de revolta ou oferecê-las serena e conscientemente ao Senhor como apostolado.

Portanto o sofrimento é parte constitutiva da existência humana. Não é possível passar por este mundo sem prová-lo. Padre Alberione – como também São Paulo – compreendeu bem esta realidade e ensinou aos seus filhos e filhas que em vez de sofrer passivamente as dores e aflições que a vida nos impõe, devemos nos unir cada vez mais a Cristo e oferecer tudo o que vivemos como sacrifício agradável a Deus.

Tomemos consciência da sacramentalidade do sofrimento. Sempre que tivermos que viver uma experiência de dor, procuremos vivê-la por Cristo – oferecendo a dor por amor a Ele -, com Cristo – sabendo que Ele não nos abandona, mas sofre ao nosso lado – e em Cristo – totalmente imersos nele e no mistério da nossa salvação. Que a meditação na paixão do Senhor nos ajude a viver de forma mais consciente o apostolado diário do sofrimento!

Manoel Gomes, ssp

 

[1] RAMLOT, M. L.; GUILLET, J. Sofferenza, in: LEON-DUFOUR, Xavier. Dizionario di teologia biblica. 5. ed. Torino: Marietti, 1976, p. 1209.

[2] RAMLOT; GUILLET, 1976, p. 1210-1211.

[3] HAFEMANN, S. J. Sofferenza, in HAWTHORNE, G. F.; MARTIN, R. P.; REID, D. G. Dizionario di Paolo e delle sue lettere, San Paolo, Cinisello Balsamo 1999, p. 1482.

[4] HAFEMANN, 1999, p. 1485.

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